Construção da História Chinesa

A China já produzia sua História e métodos historiográficos próprios muito antes da chegada das concepções européias de ciências humanas no século XIX. E - diga-se de passagem - estes métodos eram tão bem articulados que os primeiros pesquisadores estrangeiros aceitaram, por diversas vezes, as versões chinesas sobre o seu próprio passado sem muito discutir (Watson, 1969: 11-6 e Gernet, 1979: 29-36).

A História chinesa começou a ser redigida tendo por mister resgatar uma idéia de passado que servisse de modelo para as gerações futuras. Assim sendo, os chineses começaram, desde cedo, a empreender a prática de registrar, analisar, recolher dados e fixar eventos como forma de referendar certas concepções de universo e sociedade nas quais se viam inseridos.

Os dois primeiros grandes historiadores chineses teriam sido Confúcio (Kong Fuzi), que teria vivido no século VI a.C. e que se tornou famoso pela escola de pensamento desenvolvida a partir de seus ensinamentos; e Sima Qian (século II-I a.C.), o “pai” da História chinesa, que desenvolveu os métodos de pesquisa empregados na redação dos registros dinásticos até o fim da era imperial. Isso não quer dizer que antes disso a China não houvesse produzido textos históricos; mas Confúcio foi o primeiro grande recuperador e editor destes conteúdos - como a sua produção comprova -, enquanto Sima Qian foi o organizador da primeira cronologia histórica “definitiva” das dinastias antigas, bem como biógrafo dos grandes nomes da história e do pensamento chinês.

Soma-se isso ao fato da cultura chinesa apreciar com gosto a tradição enciclopedista: no mesmo século VI a.C., grande parte dos autores que integravam as diversas escolas filosóficas haviam tido experiências trabalhando no acervo de bibliotecas particulares ou dos governos locais. Este material literário, que aparentemente já era produzido em larga escala, serviria de base tanto para Confúcio quanto para Sima Qian (ainda que em épocas distintas) redigirem seus escritos.

A idéia que temos é que estes conjuntos de escritos açambarcavam diversos ramos do saber, desde arte até ciências e História. Na dinastia Han temos o conhecimento de que obras abrangentes (que teriam inspirado, séculos depois, as enciclopédias ocidentais) já eram produzidas, com o fim de instruir os elementos candidatos a burocracia em todos os níveis de avaliação exigidos (Guignard, 1957).

Confúcio, portanto, teria se valido deste arcabouço para eleger aqueles que seriam os livros tidos como clássicos na literatura chinesa: o Shu Jing (Livro das Histórias), o Shi Jing (Livro dos cânticos), o I Jing (Livro das Mutações), o Li Qi (Livro dos Rituais), o Chun Qiu (os Anais das Primaveras e Outonos, acrescido de comentários posteriores denominados Zhuo Quan) e o Yue Jing (Livro da Música - este, perdido). Destes, dois são objetivamente históricos: o Shu Jing e o Chun Qiu. O Shi Jing e o Li Qi nos dariam idéias de como seriam os hábitos e práticas culturais e sociais do período Zhou (mas que Confúcio transpõe igualmente para os períodos mais anteriores da História Chinesa); e por fim, o I Jing, que seria um livro sobre as formas primitivas de pensamento e ciência chinesa, bem como de importante uso oracular e religioso.

Sua preocupação, porém, era arrumar o conhecimento contido nos textos de acordo com sua pregação moral, sem fazer um trabalho de análise da veracidade das fontes. Este problema não parecia ser sua preocupação mais importante: os exemplos, dados pelos grandes personagens históricos, é que bastavam por si só para ilustrar as idéias por ele defendidas: "Quem, ao repassar o velho, descobre o novo é apto para ser mestre” (Lunyu, 2). E não é impossível, por conseguinte, que Confúcio mesmo acreditasse nestas versões com fé, tendo em vista sua veneração pelo passado: “Eu transmito, não invento nada. Confio no passado e o amo” (Lunyu, 7).

Mas seu trabalho é um divisor de águas no desenvolvimento da História Chinesa: é ele quem constrói a primeira grande versão da história antiga que envolve as dinastias, os personagens míticos e a realidade de sua época. Outros escritos do gênero - como os Anais de Bambu, descobertos recentemente - indicam que há uma grande probabilidade de Confúcio ter condensado, pela primeira vez, uma única versão histórica abrangente utilizando-se, para isso, de versões do Shu Jing, que tal como os outros livros, existiam anteriormente ao seu período de vida.

O poder desta realização se faz sentir na própria existência das outras escolas de pensamento que foram contemporâneas ou posteriores ao Mestre: apesar de cada uma delas ter legado seus escritos, nenhuma produziu um texto histórico ou uma versão do Shu Jing que tenha sobrevivido. Parece-nos que era mais fácil as mesmas se utilizarem da versão confucionista para tecer seus próprios comentários e críticas.

Obviamente, as obras de Confúcio foram alteradas em períodos posteriores por diversos autores, muitos deles seguidores de sua escola (Yutang, 1957:131-142). Na época da dinastia Qin (III a.C.), quando ocorreu a primeira grande queima de livros que se tem notícia, as obras do pensamento confucionista foram perseguidas e destruídas em grande número, o que fez com que houvesse uma disparidade patente entre as versões sobreviventes que foram redigidas durante a época da dinastia Han.

Por conta disso, o trabalho realizado por Sima Qian (II-I a.C.), o Shi Ji, ou Registros Históricos, situa-no como o primeiro grande Historiador de facto não só da dinastia Han como de toda a China antiga e posterior.

No vácuo deixado pelo trabalho de Confúcio, várias outras obras históricas foram produzidas, mas em geral era fragmentárias e pouco abrangentes. O Caos vivido pela época dos Estados Combatentes legou uma grande quantidade de Anais de cunho local, restritos a existência breve e conturbada de efêmeros reinos, cuja sobrevivência era bastante volátil. Foram destas reminiscências que o pai de Sima Qian, Sima Tan, historiador da dinastia Han, iniciou, por conseguinte, a redação de uma História da China que tivesse início nos tempos mais antigos e que culminasse com a glória da dinastia Han, em todo seu poder e força. Sima Tan morreu, porém, antes de construir seu trabalho: coube ao seu filho, Sima Qian, continua-lo, o que fez de forma brilhante.

Inicialmente, Sima Qian se encarregou de verificar a veracidade das informações contidas nos registros históricos, inclusive nos escritos confucionistas. Utilizando o apoio e os recursos financiados pela burocracia imperial, coletou de informações em diversas regiões do império, que depois ele iria cruzar e avaliar. Partindo desta premissa, não se limitou a fazer versões que conjugassem os dados obtidos, mas tentou analisar, dentro de uma perspectiva crítica, qual das versões existentes parecia ser a mais razoável. Comparou o resultado destas observações com as tabelas astronômicas que continham os registro de eclipses e posições astrológicas, verificando a autenticidade da datação dos acontecimentos. E ainda, sendo meticuloso ao extremo e sincero no seu trabalho, criticou tanto os personagens de sua história quanto sua própria incapacidade, por vezes, de detalhar melhor a biografia das pessoas e acontecimentos.

O resultado disso era sua afirmação de que sua obra não poderia assegurar a validade dos acontecimentos até o ano de 841 a.C., quando então as fontes estariam por demais obscuras. Hoje, estão comprovadas, por uma série de análises arqueológicas e textuais que as datas apresentadas no Shi Ji estão corretas, realmente, até onde seu autor podia assegurar! (Gernet, 1969:29-36)

Supõe-se que o trabalho deste autor tenha ainda sofrido a influência do confucionismo cosmológico de Dong Zhongshu, fortemente calcado nas teorias da escola Wu Xing, ou escola das Cinco Energias. Esta corrente do pensamento chinês, que seria depois uma das bases da ciência tradicional, defendia um sistema no qual os ciclos de reprodução e destruição mútua dos cinco elementos (ou identidades) básicos da natureza representavam a manifestação da ordem cósmica, e se reproduziam em todas as instâncias da existência. Sima Qian teria se utilizado, provavelmente, destas concepções para modificar ou interpretar certos acontecimentos históricos, o que surpreendentemente não altera de fato seus conteúdos, mas sim suas análises em certos pontos. (Granet, 1979)

Um destacado seguidor da linha de Sima Qian foi Ban Gu (I d.C.), que foi o redator do Han Shu, ou Anais de Han. Mais conciso, e menos crítico, Ban Gu se limitou a fazer somente uma história de sua Dinastia, até o período da grande divisão (9-22 d.C.), no que ele praticamente completa o trabalho do Shi Ji, finalizando a longa cronologia estabelecida pelo seu predecessor. E, a partir desta época, o modo de se fazer história ganhará uma certa uniformidade, sendo essencialmente o mesmo que se manterá até o final do império.

Desta forma, analisemos a seguir as fontes utilizadas na construção e no estudo desta antiguidade chinesa e os períodos históricos elaborados pelos mesmos.